quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

ALGARVIANA "AVANT LA LETTRE"...



Fui ao baú e recuperei um texto que escrevi em Dezembro de 2003 a propósito de uma travessia longitudinal do Algarve organizada pelo João Marques, de Loulé.


Ainda antes de haver a "Via Algarviana" e em três dias que é para gente "não piegas"! ...

INTRODUÇÃO


Foi um excelente modo de passar um fim de semana prolongado. A
proposta era aliciante: atravessar longitudinalmente o Algarve
ligando Alcoutim ao Cabo de São Vicente. O desafio era tanto mais
tentador se tivermos em conta que nesta altura do ano o pôr do sol
acontece por volta das 17:15 pelo que o andamento tinha de ser vivo
e intenso.

O grupo acabou por ser restrito e limitado, inicialmente, a nove
elementos devidamente enquadrados pelos dois guias ou seja, onze
criaturas a pedalar no total sendo de registar duas desistências.

1.ª ETAPA ALCOUTIM-ALTE, 115 KMS. – 29NOV03
Arrancámos da praia fluvial de Alcoutim. A primeira subida, entre
esta vila e a EN 122, acabou por revelar-se violenta mas a frescura
inicial permitiu levá-la de vencida sem problemas. Depois foi rolar
em planalto até Giões e daí até Martinlongo, zona do primeiro
reabastecimento.

Prosseguiu-se descendo até à famosa ribeira do Vascão, a linha que
separa o Algarve do Alentejo e que marcou a fronteira dos 50 kms. Lá
fomos pela sua margem, primeiro montados, depois empurrando o
velocípede por algumas centenas de metros pela a margem alentejana
para se voltar a reentrar no Algarve a pedalar passando por uma
estupenda ponte com cerca de um metro de largura e sem guardas
laterais

A partir daí fomos subindo a ribeira até nos internarmos na Serra do
Caldeirão e chegámos ao cruzamento com a famosa EN2 onde se efectuou
o segundo reabastecimento. Confesso que aí comecei a ficar algo
preocupado: faltavam 35 kms. até ao final em Alte e já passavam das
16:00. Adivinhava-se pois extrema dureza pela frente.

Lá seguimos subindo junto ao Vascão e começa o famoso "rompe -
pernas". Confesso que foi muito complicado gerir estas subidas
curtas e íngremes e procurei desmultiplicar tudo o que me era
possível na tentativa de reduzir o esforço mas as "paredes" iam
sucedendo-se uma atrás das outras com descidas vertiginosas de
permeio para complicar.

A dada altura a noite cai implacável. Restou seguir por estrada os
cerca de quinze quilómetros finais. Se começámos alegremente por
descer durante mil e quinhentos metros uma pendente de 10% tivemos,
logo de seguida, auxiliados pelos faróis do jipe de subir idêntica
distância e pendente.

Descemos e alcançamos finalmente Salir, mas ainda havia que vencer a
dezena de quilómetros final até Alte pondo um ritmo diabólico bem no
limite do suportável. Aí chegados ainda temos de subir mais dois
quilómetros até ao Hotel que ficáva lá bem no topo e, uma vez aí
chegados, vencer a sua incrível rampa.

Quando parei nem queria bem acreditar que tinha terminado aqueles
115 kms. de uma dureza indescritível. Esta cândida felicidade
inicial foi substituída pela preocupação de saber que no dia
seguinte idêntica distância nos esperava até ao Rogil.

2.ª ETAPA - ALTE – ROGIL, 110 kms. (30NOV03)
Lá partimos, "cantando e rindo", por uma bonita zona de Barrocal por
entre pomares e citrinos numa paisagem tipicamente algarvia, após a
qual transpusemos a A2 e, alguns quilómetros volvidos, alcançámos o
IC1, que acompanhámos durante um par de quilómetros num caminho
paralelo pelo seu lado nascente após o qual cruzámos essa via e,
logo após, a ferrovia (linha do Sul).

Ficámos uns instantes em cima dos carris fazendo algum do humor
negro tradicional nestas ocasiões mas fomos surpreendidos pelo agudo
silvo de uma locomotiva diesel. Tempo de sair lá de cima,
rapidamente, não fosse termos de indemnizar a CP por danos no seu
material circulante...

Alcançámos o Arade e a barragem do Funcho que acompanhamos por
alguns quilómetros até nos envolvermos com a Serra, num percurso de
Sul para Norte, primeiramente, e depois para poente, num novo e
desconcertante "sobe e desce".

Aqui, nesta zona a norte de Silves, encontramos o resultado de um
Verão quente, já que entrámos em plena zona de incêndios e onde deu
para constatar algo de curioso: todo o eucalipto tinha ardido mas,
salvo algumas excepções, as espécies mediterrânicas estavam intactas
ou em bom estado designadamente os sobreiros, as azinheiras, as
oliveiras ou as alfarrobeiras.

Começam então as grandes ascensões, a primeira das quais durante
quase 3 quilómetros e que nos levou dos 70 aos mais de 350 metros.

Constato alegremente que num percurso sempre ascendente consigo
manter a pulsação elevada mas estável e imprimir um ritmo
interessante sentindo-me em boas condições, muito melhor que no
ritmo "sobe e desce".

Durante alguns quilómetros acompanhamos, a uma cota elevada, o curso
da Ribeira de Odelouca num cenário incrivelmente belo, do mais
bonito que vi durante a travessia. Foi então tempo de descer, de
novo, e muito fortemente até uma cota baixa aproveitando uma estrada
de asfalto sempre a direito.

Transpomos a ribeira e recomeçamos a subir a serra. Atingido o topo
deparamos com medronheiros com os respectivos frutos no ponto ideal
de maturação e que nos obrigaram a fazer uma agradável pausa
degustativa ao mesmo tempo que, por alguns minutos, estiava
agradavelmente dando um ar verdadeiramente mediterrânico ao cenário
serrano.

Tinhamos agora novo vale a transpor e a povoação de Alferce do outro
lado e as tão prometidas sanduiches de presunto esperando. Repostas
as forças lá vamos em direcção a Monchique agora com a chuva por
companhia. A zona de Monchique é muito diferente daquilo que se pode
considerar o tradicional Algarve serrano. Muito verde e muita água e
a poder ser considerada como a Sintra algarvia.

Começa então a ascensão à Fóia, o ponto mais alto do Algarve, sempre
debaixo de chuva cada vez mais intensa. O ataque é feito pela
encosta sul e revela-se um trabalho árduo mas que todos levaram de
vencida.

O topo, aos 910 metros, é alcançado debaixo de uma tempestade de
vento, nevoeiro e chuva intensos e em que o panorama que se avistava
se resumia a uns míseros metros por diante.

Tempo de descer por norte, na direcção do Selão. Foram quilómetros e
quilómetros de divertimento feitos de forma muito rápida pelo meio
de eucaliptais invariavelmente queimados.

Chegámos ao Selão já a anoitecer e seguimos pela EN501 de forma
muito rápida durante vários quilómetros. Após o final da estrada e
já em plena noite, é solicitado um esforço adicional: uma rampa
indecentemente inclinada já perto de Maria Vinagre e vencida a muito
custo já com mais de 100 kms. nas pernas.

Foi mesmo a última dificuldade do dia e poucos quilómetros após
alcançámos o Rogil e o descanso merecido.

3.ª ETAPA – ROGIL – CABO DE SÃO VICENTE, 67 kms. (01DEZ03)
Quer pela distância, quer pela altimetria, quer ainda pelo facto de
ser a derradeira, esta poderia ser considerada como a etapa de
consagração. Os factos demonstraram que assim foi.

Ainda assim este foi o dia em que os elementos naturais mais se
uniram contra os ciclistas: a temperatura baixou, o vento soprou em
rajada e a chuva, sob a forma de aguaceiro forte, abateram-se sobre
nós impiedosamente mas que mereceram, da nossa parte, um salutar e
olímpico desprezo. Nada, nem ninguém, nos faria demover do nosso
intento de alcançar o Cabo que ostenta o nome do padroeiro de Lisboa.

Após umas afinações iniciais (sobretudo ao nível dos travões já que
as fortes descidas do dia anterior, aliadas ao terreno molhado,
haviam provocado alguns estragos a este nível) lá partimos em
direcção à vila de Aljezur.

Chegados a esta histórica povoação foi tempo de nos embrenharmos
pelas ruelas históricas ascendendo ao castelo. É uma tarefa árdua já
que a pendente é muito elevada transformando as vielas de mau piso
em autênticas rampas, bem inclinadas.

Seguimos para sul e, já em pleno Parque Natural do Sudoeste
Alentejano e Costa Vicentina, rolámos de forma muito rápida pelos
estradões que cruzam os pinhais e eucaliptais e, num abrir e fechar
de olhos, alcançamos a várzea da ribeira da Bordeira tendo como
companhia, a nascente, a incrível serra de Espinhaço de Cão.

A seguir à Bordeira seguimos para a Carrapateira onde divergimos
para poente para os estradões que seguem já junto à costa. Parámos
numa falésia junto ao mar num dos raros momentos de sol da jornada
numa zona de incrível beleza: a costa vicentina no seu máximo
esplendor!

Alcançada a Praia do Amado aproveitámos para reabastecer as nossas
energias. A ideia era seguir, "à mão" pela praia. Numa breve análise
calculei que fosse possível pedalar pela praia já que estava baixa-
mar. Aproveitei a descida e consegui pôr-me junto à linha de água,
onde a areia é mais firme e por ali seguimos naquele que foi um dos
mais interessantes momentos da travessia.

Tarefa difícil foi a de transpor a duna e subir a falésia, que
embora fosse ciclável, tinha uma pendente incrível e um piso
terrivelmente solto. Foi um daqueles momentos mágicos do BTT em que
se olha para trás e se constata que, em cerca de 2000 metros se
ascendem dos 4 aos quase 300 metros! A vista era, por seu turno,
deslumbrante.

Retomamos a estrada para, por ela nos, deslocarmos velozmente até
Vila do Bispo. O sabor a final já estava no ar. Tomámos uns
estradões por uma espécie de estepe e debaixo de um autêntico
dilúvio, até ao Cabo de São Vicente que alcançámos após 67
quilómetros e pelas 14:00.

Era o final da travessia, 292 duros quilómetros após abandonarmos
Alcoutim! O sabor a vitória e a dever cumprido pairava no ar aliada
à enorme sensação de alívio.

EPÍLOGO
Nunca duvidei que conseguisse mas foi mais duro do que pensei
inicialmente. Por manifesta falta de tempo, não efectuei nenhuma
preparação específica para esta travessia.

Por causa da luz do dia disponível nesta altura do ano o ritmo
imposto foi forte e o grau de exigência física foi elevado. Por
outro lado os perfis de tipo "sobe e desce" são terríveis para
manter um ritmo constante. Pessoalmente prefiro ascensões
inequívocas e demoradas são mais facilmente geríveis em termos
físicos.

De resto as duas baixas aliadas a alguns recursos ao jipe de apoio
por parte de alguns elementos na segunda, mas sobretudo na primeira
etapa estão aí para o provarem. O final do primeiro dia foi mesmo o
pior de todos, sobretudo se tivermos em conta que ainda restavam
mais dois pela frente.

Felicito todos os que, comigo, partilharam aqueles, afinal, breves
momentos de eternidade!

2 comentários:

Borboleta com Asas disse...

Obrigada Pedro Roque, adorei!
Fantástica aventura!!!
Recordo que no passado ano o meu filho, fez a Via Algarviana em 3 dias, fiquei deslumbrada, vi fotos e senti a alegria dele, que também foi minha.
Este ano se Deus quiser,logo que termine a caminhada díficil que estou a superar,proponho--me,fazer a Via Algarviana, nem que seja em 8 dias :)
Contará a aventura!<3
Um grande bem haja Pedro Roque:

«Felicito todos os que, comigo, partilharam aqueles, afinal, breves
momentos de eternidade!»

Borboleta com Asas disse...

Obrigada Pedro Roque, adorei!
Fantástica aventura!!!
Recordo que no passado ano o meu filho, fez a Via Algarviana em 3 dias, fiquei deslumbrada, vi fotos e senti a alegria dele, que também foi minha.
Este ano se Deus quiser,logo que termine a caminhada díficil que estou a superar,proponho--me,fazer a Via Algarviana, nem que seja em 8 dias :)
Contará a aventura!<3
Um grande bem haja Pedro Roque:

«Felicito todos os que, comigo, partilharam aqueles, afinal, breves
momentos de eternidade!»