Lembro-me que a minha primeira bicicleta era
pequenina, porque também eu era pequena. Era amarela, porque também eu era
amarela. Não. A última parte é mentira. A bicicleta era amarela, eu não. Lembro-me
que fui dar as minhas primeiras e rudimentares pedaladas num jardim público
perto de casa. Diga se também, já agora, que tal audácia teve lugar sem recurso àquelas rodas traseiras que dão cara de triciclo às bicicletas, e só atrapalham
ao invés de estimular a segurança. As próprias bicicletas as odeiam. Estou em
crer.
Lembro-me, de perto, tão perto como deste lago ali àquele, da sensação de
liberdade e poder que concede a força do pé firme abraçado a um pedal,
que faz rodar a roda que dá vida a tudo e até anima as rãs. Depois, na sequência, houve as quedas,
as técnicas da queda e a queda pura. Houve travões destravados em grandes
descidas, sem mãos no volante, a cabeça no ar e a certeza de que possuía
suspendidas nos cabelos miríades de fadas boas, em miniatura (para caberem muitas),
que nunca permitiram que eu caísse fora do coxim. Super bicicleta amarela e
super confiança verde. A fé também lá estava (roxa de tão espremida), movendo a
bicicleta, sobretudo nas subidas (ainda hoje é assim). Cai que me fartei, por diversas vezes e, upa.
Vamos lá, limpar as lágrimas e gozar o charme do mercúrio que pincela enfeitadamente os
joelhos. Uma assinatura radical, uma afirmação da superação do tombo. Depois,
roda que roda, seguiram-se outras bicicletas menos amarelas e já mais armadas
ao pingarelho, quer porque eu ia crescendo, quer porque as bicicletas iam
diminuindo o tamanho na proporção inversa à do meu desenvolvimento. Sendo isso uma
e a mesma coisa mas em bicicletas diferentes. A última (da fase da
adolescência) era encarnada. Divertimo-nos. Mas isto das rodas é assim: meneia.
E na dinâmica que tudo faz girar, voltei a ‘bicicletar’, convicta e
apaixonadamente, nos anos que morei junto ao mar. Uma bicicleta lilás, com a
qual tracei em linhas múltiplas junto à costa um mapa de dias bem pedalados.
Mais tarde, mas mesmo a tempo, ainda agora aqui chegada, voltei
a criar renovadas tensões com uma bicicleta. Excitações: emotivas umas,
racionais outras. Esta bicicleta de que falo, preta e branca, já preparada para todo o
terreno e mais algum, é bem mais atrevida do que as suas antecessoras.
Desafia-me nos limites da minha capacidade de esforço. Provoca-me a coragem.
Incita-me. Impõem-se sem se impor. Possui dignidade. Tem uma personalidade
própria. Reconheço-lhe bravura. Estimula campos dantes nunca inflamados. Mostra-me
terrenos nunca dantes explorados. Temos uma relação de parceria, por vezes
romântica, pacífica e amorosa, outras vezes agitada e conflituosa. Porém, somos
cúmplices. Garantidamente. Foi especialmente amoldada a mim, quer no avanço do
guiador, quer no selim, como roupa feita à mão artistica da modista. Foi uma boa ideia. Muitas
vezes somos uma só mecânica, uma força única, noutras temos ajuda (de um destemido
ajudador), noutras vezes, ainda, confesso, sou capaz de me atirar ao chão só porque sim ou porque não.
Hoje, contudo, não é o caso. Estou certa de que sempre que pensar as bicicletas, estarei
a viajar por atalhos das emoções e na senda da mecânica das sensações, estradas e caminhos, rotas e
desvios. Se seguindo os trilhos conquistarmos os cumes dos montes e das serras, melhor. Mas isso será sempre uma consequência daquilo que damos pelo caminho.
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