terça-feira, 18 de março de 2014

a roda que roda no universo que gira

Tenho uma certa dificuldade em assinalar os locais com rigor geográfico (desculpem lá a basicidade mapeal). Julgo que essa limitação terá origem no facto de me prender mais com a imagética do local, os cheiros, as cores, as conjugações impensadas da natureza, do que propriamente com o nome que dão ao sitio. Além disso, para garantir o rigor das coordenadas, e os nomes das localidades, está o grão-mestre que me conduz nestas andanças e o aliado GPS. É com este esclarecimento introdutório sobre esta minha restrição que sigo em frente nos trilhos do que aqui confesso, com a convicção de que serei sempre guiada pela beleza das coisas e no sentido da constelação nascente. O resto é um ali e um acolá.

Mas para chegar a qualquer sítio, bem sabemos, há quase sempre a necessidade de empreender um ou outro ritual, trabalhos vários e esforço certo. Neste caso tudo começa com o toque de um despertador, muito cedo, quase de madrugada. Diria mais: mesmo de madrugada, ofendendo os galos que cantam. Está garantido que isto da bicicleta que roda não se compadece com a possibilidade de ficarmos a dormir em almofadados e quedos colchões e a pedalar ao mesmo tempo. E oh se me custa dizer não ao pecado acolchoado. O ritual que antecede a profusão de prodígios naturais, ainda que o execute com uma certa revolta até perder de vista a tentação da preguiça, é fundamental para dar substância à recompensa. Mas adiante, que isso faz parte das lengalengas que dizem que o esforço compensa e isso já vocês sabem.

De facto, o todo terreno em bicicleta é um desafio surpreendente. Hei de dizê-lo e escrevê-lo mil e tantas vezes, apenas por ser verdade e me fazer formigueiro na parte da extravagância. O BTT é, na verdadeira aceção do conceito, uma aventura. Um destes dias idos, saindo de Torres Vedras, passando pelo Vimeiro, Santa Cruz, Santa Rita, Praia Azul, e por aí fora, lá fui subindo e descendo, umas vezes com a bicicleta ao colo, por gozar ainda de alguma insegurança quando toca a descer montanhas e serras que mais me parecem linhas de terra verticais em direcção ao centro do mundo de tão inclinadas que estão, noutras destemida lançada no espaço lá vou estoqueando o vento que deixo para trás atónito, até me ser dada a possibilidade de desembocar diretamente no pulcro do inesperado.


E é justamente o acidental preclaro que nos recebe depois de descermos a pique até Fonte dos Frades e entrarmos diretos numa outra dimensão, aquela em que deixamos de saber se somos nós a abraçar a montanha ou se é ela a abraçar-nos num enlaço intenso e ‘apassionato’. A estética daquele lugar ficar-me-á tatuada na pele como a nebulosa que tatua o cosmos. Enquanto passamos, roda que roda, a foz do rio Alcabrichel canta a canção das águas novas que refletem as protuberâncias calcárias das velhas montanhas ao longo de uma alameda festivamente relvosa, pueril, pintada com centenas de pequenos malmequer amarelos que nos dão a certeza de estarem vivos acenando-nos entusiásticos na base da terra as suas petalazinhas. Há naquela paisagem a simplicidade e o sortilégio que encontramos nos livros  que nos falam de inefáveis lugares. Há naquele lugar coordenadas de emoção que provocam uma alegria que quero totalizar em mim. Para sempre.  

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