quarta-feira, 17 de maio de 2000

ESTRELA, A DUREZA AMANTEIGADA

Pensávamos já tudo conhecer em matéria de BTT. É esse o deslumbramento ufanode quem já vai conhecendo, de cor e salteado, todas as curvas, todas assubidas, todos os saltos e todos os buracos das Serras de Arrábida, Sintraou Monsanto. Assim sendo, intuímos, erradamente, que o pedaleio já não nosreservava quaisquer surpresas.Mas, de uma agradável e dura surpresa, se tratou o passeio do Bike Team edo Grupo BTT de Manteigas no ponto mais alto de Portugal Continental, ali,naimponente e inigualável Serra da Estrela.Talvez devido à grande distância que separa os grandes centros do litoral dasimpática vila de Manteigas (só de Lisboa são 315 kms.) o número departicipantes foi algo reduzido, circunstância que, diga-se em abono daverdade, até resultou qualitativamente.Assim éramos "poucos, mas bons" e, como habitualmente, bem enquadradospelos companheiros do Bike Team (com as suas jerseys encarnadas justamenteno que haveria de ser o "dia do Leão") e do Grupo de Manteigas para quemdesníveis desta grandeza são mais familiares.Deu para tudo, este passeio: começámos por rolar "à Pantani" (não, nãosubstituímos os capacetes por lenços) subindo, por asfalto, dos 700 aos1200 metros, em cerca de sete quilómetros, para aquecer bem o conjunto elogo aí se viram as diferenças de rendimento ciclístico quando o "pelotão"se esfrangalhou por completo. O mais curioso de tudo foi o calor - esteve umdia deVerão, a prova disso foram os bronzeados duplos, bem à ciclista, que seproduziram, só que, o ambiente parecia surrealista, pois bastava olhar paraOeste e via-se a Torre ainda com neve !Saímos finalmente da estrada (as rodas finas, afinal, tinham ficado em casa)e iniciamos o "downhill". Quando julgávamos que iria ser permanente eis quecurvamos para a esquerda e deparamos com uma rampa íngreme, a subir, de pisomuitotécnico que obrigou, quase todos, a desmontar (a nós também, pronto,admitimos, e qual é o mal ?). O que era mais curioso é que até já havíamossubidocoisas mais inclinadas e com o piso mais difícil, só que o problema, meusamigos, é que já estávamos para lá dos 1100 metros de altitude e, aacreditar nos especialistas, com menos 10 a 15% de oxigénio do que ao níveldo mar ! Nestas circunstâncias o pulso subia bem mais rápido e demorava maistempo arecuperar e, consequentemente, contra factos não há argumentos.Após uma pausa num mirante, onde para além das inevitáveis apostas sobre oSporting (ojogo decisivo era às 19:00), observávamos Manteigas e o estupendo valeGlaciardo Zêzere de cima para baixo, avançamos como águias avançamos até ao"tecto", apóscruzarmosuma zona de paisagem lunar e ventosa.Chama-se o "corredor dos mouros" e está situado a 1301 metros de altitude.Como não podia deixar de ser este é um lugar de lendas imemoriais. Apanorâmica era simplesmente fabulosa e só por ela mereceu a nossadeslocação - 360 graus, inteirinhos, à nossatotal disposição ! A norte, quase no horizonte, a cidade da Guarda, asudeste e lá em baixo a vila de Belmonte, mesmo a calhar agora que secomemoram os 500anos do Brasil já que aquela localidade beirã é a terra natal de Cabral e, asudoeste, o maciço imponente da Torre ainda nevado. De tal formaimpressionante a panorâmica que houve, inclusive, quem gritasse: "lookmomma, I'm in the top of theworld !".Passo seguinte, descer, abruptamente, até aos 940 metros do vale do Mondego,em cerca de dois quilómetros, a justificar, mais uma vez, o patrocínio "NoFear" precisamente até um sítio que parecia tirado de um postalsuíço, bem encaixado nas montanhas, a que correspondeu uma pausa, junto àcapela e à sombra das árvores, onde a água pura da serra corriaa rodos (a água corrente constitui, aliás, uma presença permanente naSerra). Tempode substituir a mistela, já quente, que trazíamos às costas, por aquelelíquido fresco ecristalino. A pausa aí durou um pouco mais já que havia que reparar asconsequências do excesso de adrenalina que desequilibrou a descida deum dos participantes, embora sem consequências graves, felizmente.A partir desse ponto percorremos o vale do Mondego durante algunsquilómetros.Parecia agora que estávamos noutra serra, mais verde e menos pedregosa comumaleve ocupação humana. Perto do Covão da Ponte deu-se o episódio maispitoresco daincursão: umavaca que, apesar do seu enorme porte, resolveu fugir, amedrontada, dosbetetistas e dosseu donossaltando uma vedação com quase dois metros perante a incredulidade geral.Inevitavelmente pensámos: "mas porque é que os cães não são todos como estavaca ?" (o contrário levar-nos-ia a desistir do BTT se bem que num qualquerpasseio na lezíria ribatejana sempre possa acontecer ...).Regressados ao asfalto após mais uma daquelas "ligeiras" subidas e uma vezque a fome já apertava (passava já das 13:45) descemos a mesma estrada doinício até a Manteigas, de novo "à Pantani" e o "pelotão" tornou a chegaresfrangalhado só que, neste ponto, já não foram as pernas, os pulmões ou ocoração que operaram aselecção mas a adrenalina de cada um e, no nosso caso, a fome descomunal.O melhor estava ainda para vir. Não nos referimos já a quaisquer detalhesvelocipédicos (esses estavam já definitivamente arrumados após 34extenuantes quilómetros). Falamos sim, quer do reconfortante duche nosbalneários do pavilhão municipal de Manteigas, quer, sobretudo e, maisconcretamente, do super-almoço. É que, para além de muito bem confeccionado(embora a fome seja, sempre, o melhor dos cozinheiros e já passava das15:00) permitiu um salutar convívio entre todos os participantes.O convívio é fundamental neste tipo de eventos, normalmente nunca há ocasião para isso - chega-se, inevitavelmente, em cima da hora, monta-se o "trem"velocipédico, pedala-se, volta-se a desmontar tudo e zarpa-se, cada um parao seu lado. Nunca há tempo para conviver e dialogar com os nossos "pares" -aqueles que, tal como nós, optaram por esta autêntica filosofia de vida -pedalar emtodo e qualquer terreno em intensa comunhão com a Natureza.Assim esta iniciativa do Bike Team, para além da mais valia velocipédica,atrás descrita, foi o paradigma e a síntese de tudo isto.Pedro Roque

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