segunda-feira, 29 de março de 2010

O INDICADOR DE CIVILIZAÇÃO

por LEONÍDIO PAULO FERREIRA (DN)

King Liu tinha já 75 anos quando em Maio pedalou 1668 quilómetros entre Pequim e Xangai. Fundador da Giant, o maior fabricante mundial de bicicletas, o incansável Liu está horrorizado com a tomada de assalto das ruas e estradas chinesas pelos automóveis e quis mostrar que, tal como na sua Taiwan natal, não há qualquer incompatibilidade entre dar ao pedal e mostrar grande pedalada económica. Foi premonitório. No final de Junho, os jornais davam conta de que se tinham vendido mais carros na China do que nos Estados Unidos durante o primeiro semestre de 2009: pouco mais de seis milhões no país emergente, 4,8 milhões na superpotência atingida em cheio pela crise.

As imagens de Pequim polvilhada de ciclistas pertencem ao passado, mas nem tudo está perdido e Liu contava sábado ao Financial Times a sua última aposta: fazer de Kunshan, uma cidadezinha (!) de 650 mil habitantes, um modelo para o resto da China, com ciclovias que ignoram os engarrafamentos e permitem poupar tempo e dinheiro. Na capital, o efeito de imitação fez-se sentir e a câmara retirou as leis que impunham restrições aos ciclistas. Em Xangai, onde se calcula existirem dez milhões de bicicletas, começa a haver quem exija que as restrições sejam aos automóveis.

Os chineses terão descoberto as bicicletas em 1868, quando um funcionário alfandegário veio de França impressionado com " as duas rodas unidas por um cachimbo". Mas foi na era comunista que aconteceu a revolução dos pedais. Isolada do mundo, empobrecida pelas guerras, a China fez da bicicleta tanto um meio de transporte como um símbolo de auto-suficiência. No romance Irmãos, onde Yu Hua conta a evolução da China desde a escassez comunista dos tempos de Mao Tsé-Tung até à euforia consumista da era Deng Xiaoping, brilha a bicicleta Eternidade. Song Gang condu-la orgulhoso a caminho da fábrica, mas claro que o irmão Baldy Li, pouco dado a operário mas com jeito para o negócio, será o primeiro da família a ter carro.

Não há razão para rir das bicicletas. É na Europa, onde não falta dinheiro para automóveis, que estas mais brilham. Helsínquia, Berlim ou Amesterdão são exemplos. Mas mesmo na China, que produz dois terços dos 130 milhões de bicicletas fabricadas anualmente, há motivos para acarinhá-las. Boa parte dos 1300 milhões de chineses continua longe de ter dinheiro para qualquer coisa com motor. O país importa cada vez mais combustíveis. E o ar nas cidades ameaça tornar-se irrespirável. Mesmo com a economia a crescer na casa dos 10%, mesmo com um chinês a comprar a Volvo, não há razão para, com tanta pedalada, se esquecerem das bicicletas. "São um indicador de civilização", diz Liu.

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