terça-feira, 19 de julho de 2011

LOULÉ, TERRA DE TRADIÇÕES E DE BICICLETAS




O texto que se segue é da autoria de um grande algarvio que dá pelo nome de José Mendes Bota.

Por força das circunstâncias tive e tenho o grato prazer de ser seu amigo e sei, de mote próprio, que a paixão com que se entrega às suas responsabilidades conferem uma marca especial a tudo quanto faz. Também a sua passagem pelo ciclismo na condição de dirigente desportivo não constitui excepção tal como o prova o texto que abaixo se transcreve. 

Nele, Mendes Bota elabora um depoimento sobre a sua vivência no ciclismo, como adepto e como dirigente clubístico e associativo, e sobre a importância que o desporto velocipédico teve e tem no município de Loulé. Um testemunho para o escritor Neto Gomes, que prepara um livro sobre o ciclismo em Loulé. 

Acresce ainda a circunstância de, Mendes Bota, ser tio de uma atleta de referência no BTT algarvio e nacional (vertente de XC) que dá pelo nome de Irina Coelho também ela uma orgulhosa louletana.

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LOULÉ, TERRA DE TRADIÇÕES E DE BICICLETAS
Por José MENDES BOTA

O ciclismo é um dos desportos mais  belos e emocionantes do mundo.  Esta característica é  hoje alavancada pela televisão, que permite um acompanhamento em tempo  real das competições, à disposição universal de toda a gente. Tive etapas diferentes à volta das voltas. 

O despertar numa terra que amava o ciclismo de uma forma entusiasmada, aconteceu na  década de sessenta. E os heróis chamavam-se Vítor Tenazinha, Valério Chocolateira (o da camisola amarela), Perna Coelho, Casimiro Cabrita, e muitos outros que recordarei depois de  ler este livro do Neto Gomes. 

Os dirigentes eram o Bexiga Peres e o dr. Manuel Gonçalves. O técnico, massagista, mecânico e faz-tudo-o-resto, o polivalente Manuel Costa. Não havia televisão. As notícias chegavam via rádio, não raramente, por telefone. Fulano ia em fuga em Beja, com meia hora de avanço, a chegada era em Faro. E lá ia foguete. Se a vitória sorria às camisolas de listas verticais vermelho e branco, era um arraial de S. João. O povo saía às ruas, juntava-se nos cafés, era a alegria geral. 

E assim, à distância, se ia acompanhando as proezas e as desilusões dos heróis do pedal de Loulé. Havia outras equipas, de amadores, como o Atlético, e disputavam-se muitas provas pelas aldeias. Aos domingos, a pista do Estádio da Campina, com o seu perigoso empedrado irregular, posteriormente coberto de sal-gema, enchia de multidões para ver o espectáculo de sprints com os rivais de Tavira capitaneados por Jorge Corvo, e equipas de fora como o Benfica ou o Sporting. 

Voltei à estrada, após o 25 de Abril, como dirigente do Louletano com 18 anitos de idade, liderando uma equipa fraquita na Volta a Portugal, que acabou muito desfalcada pelas desistências e pelo Captagon do Manuel Beirão (nunca mais esqueci estes nomes…), mas tive a honra de acompanhar e apoiar um dos maiores trepadores do pelotão nacional, chamado José Madeira. Foi uma experiência inolvidável, prometo um dia, quando recuperar o meu arquivo gigante de papelada, fazer um livro só sobre as vivências ciclísticas. 

Em 1978, salvo erro, convenceram-me a presidir à Associação de Ciclismo do Algarve, onde estive até 1984. Era uma equipa de gente voluntariosa, o “Favas”, o José Manuel Farrajota, o António da Avó, o “Zequinha” (hoje sr. Viegas Ramos) e muitos outros, que conseguiu recuperar a Volta ao Algarve para o calendário velocipédico nacional, num tempo em que não era fácil arranjar patrocínios. Trouxémos duas vezes a selecção da Lituânia (ainda na época do império soviético), e quase se arranjou um conflito diplomático, pois queriam todos
pedir asilo político. Criámos selecções de escalões juniores onde despontaram alguns valores interessantes, a coisa dinamizou com muitas equipas novas, um pouco por todo o Algarve. 

No princípio da década de oitenta, por duas vezes, integrei o júri da Volta a Portugal, no tempo de Mário Ferreira e Francisco Nunes na Federação, e assisti ao segundo lugar do maior ciclista algarvio que vi correr até hoje, Luis Vargues, então a correr pelo Campinense, e cuja carreira poderia ter ido mais além, pois tinha potencial físico para isso. Ali continuei, conciliando este hobby com os primores de um percurso autárquico. Penso que deixámos a Associação, sediada em Loulé no torreão do mercado municipal, com algo mais do que a caixa de sapatos com meia dúzia de fichas que herdámos. Até ao dia em que o cão atravessou a marginal de Quarteira numa Volta ao Algarve, e Joaquim Agostinho caiu desamparado, sem capacete, traumatizado, foi tarde para o hospital, não havia helicópteros no Algarve, quando chegou a Lisboa era tarde demais. Nesse dia, tomei a decisão de abandonar o ciclismo. Era o presidente do júri dessa prova. E apercebi-me do amadorismo sem rede em que todos ali andávamos, e nos riscos em que incorria o nosso voluntarismo, na base das boas-vontades. Ainda tenho gravadas na memória as imagens do campeão em sangue, do José Alentejano a fazer de enfermeiro. Numa história que tem contornos que nunca foram contados como deve ser, e aqui não serão. Ainda. 

Afastei-me do ciclismo activo, até hoje. Tive uma intervenção decisiva junto do holandês “patrão” de Vale do Lobo, que o convenceu a fazer uma parceria com o Louletano, criando a melhor equipa de Loulé, e do Algarve, que jamais se formou nesta terra, nesta região, e ganhou tudo o que havia para ganhar em Portugal. Desde logo, o pequeno inglês maluco, Cayn Theakston, vencedor da Volta a Portugal. 

Mas era uma esquadra, liderada pelo experiente Marco Chagas, com o Joaquim Gomes, o Cássio Freitas e tantos outros ciclistas de primeira linha do pelotão nacional. Tudo isto começou para que o resort turístico “pagasse” à autarquia de Loulé uma dívida de 40.000 contos. Estive lá, a assistir pelo ar à última etapa da consagração louletana. Como esquecer? 

Deixei o ciclismo, mas por dentro, o coração continua a palpitar de emoções. Tornei-me adepto de sofá. Sempre que posso, não perco uma transmissão em directo. A beleza das paisagens. O tacticismo das equipas. A força dos atletas, o colorido das camisolas. Claro que preferia os clubes tradicionais, em vez das marcas comerciais. Mas a vida é assim. O desporto é belo. Chorei ao lado dos atletas. Berrei até à exaustão atrás deles. Mudei rodas furadas num ápice. Matei-lhes a sede com bidons de água fresca. Levantei-os das quedas e empurrei-os de volta à estrada. Partilhei o nervosismo que antecede as partidas. Vi seringas, cápsulas, sou do tempo das algálias, tenho histórias para contar que nunca mais acabam. Umas de rir, outras de espanto, e outras de chorar.

O ciclismo é como a caça e a pesca. Por cada conto, acrescenta-se um ponto. Exagera-se um bocado, mas enche-nos a alma. Se não tivesse nascido e crescido em Loulé, é possível que tivesse passado ao lado do ciclismo. Loulé foi terra de bicicletas. Já não estou seguro que seja assim, embora haja o BTT e pedalam centenas de amantes do pedal aos domingos de manhã. O mundo muda, e a nossa terra também. Lamento que não se tivesse feito um velódromo a sério, em vez de um estádio  enorme que serve para muito poucos. 

Poderia ter sido a sede do ciclismo algarvio, um verdadeiro pólo de animação desportiva e de atracção turística. E ficava em Loulé. Terra de tradições e de bicicletas.

Loulé, 28 de Junho de 2011

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