domingo, 6 de agosto de 2000

1.º Caminho do Tejo em Bicicleta - "Diario de Bordo"


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"No fundo o que está em causa é sempre o mesmo: o apelo do Homem para se
ultrapassar a si mesmo, a sua eterna inquietação, a sua condição de ser que
procura ... É de esperar, porém, que os peregrinos de hoje só sintam uma
efectiva satisfação com a ida a Fátima ou a outro santuário qualquer se ela
envolver alguns riscos e alguns incómodos, se ela for a incursão a um tempo
e a um espaço muito diferentes da vida quotidiana."

José Mattoso, "Caminho do Tejo", p.5, Readers Digest, Lisboa, 2000

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"O Caminho de Fátima é uma longa provação e o Peregrino tem de estar
preparado para sofrer, para aceitar o desafio e superar-se pelo efeito da
sua própria sublimação espiritual."

Pedro Roque (após a chegada ao santuário pelas 22:30).

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PRÓLOGO
Sejam quais forem os motivos (espirituais, religiosos, culturais,
aventureiros, turísticos) a peregrinação a Fátima sempre seduziu inúmeros
portugueses e até estrangeiros, crentes ou não.
Nesse pressuposto a iniciativa do CNC (Centro Nacional de Cultura) de
delinear o chamado "Caminho do Tejo" no âmbito dos diferentes "Caminhos de
Fátima" é extremamente louvável.
Pensado para afastar os peregrinos dos perigos da partilha da EN 1 com as
viaturas motorizadas e do consequente desnível de massas em presença, o
"Caminho" transita por algumas zonas muito agradáveis e de enorme valia
paisagística, ambiental e patrimonial que normalmente passam completamente
despercebidas ao viajante dos tempos actuais, mais interessado em poupar
tempo de trajecto do que em contemplar a envolvente.
De salientar que os 129 kms. evocados no guia do CNC correspondem a uma
medição algo benévola e equivalem a uma distância linear através de
auto-estrada entre Lisboa e Fátima (que tive ocasião de comprovar isso no
odómetro da minha viatura). Quanto à distância real do "Caminho" isso já é
uma história bem diferente - o meu ciclometro (que julgo correctamente
aferido) marcava, no Santuário, à chegada, 165 kms.! Se tivermos em
consideração que uma vintena deles corresponderam à distância Almada -
Parque das Nações (13 kms.) e a alguns pequenos desvios, então estamos na
presença de cerca de 145 kms. efectivos, já que o "Caminho" não é linear
antes segue um itinerário
caprichoso procurando misturar os mais diversos tipos de pisos e ambiencias.

OS CICLOPEREGRINOS E AS SUAS MÁQUINAS
Foi pois, com um "espírito de peregrinação" que encetamos o "Caminho" no
passado dia 02AGO00 pelas 06:00 em Cacilhas. No dia anterior tínhamos
colocado as viaturas em Fátima para obviar o regresso.
O grupo era constituído por mim, Pedro Roque, que me fiz transportar na
minha "muleto" (bicicleta de reserva) uma pesada "Confersil" de montanha de
cor prata, por Eduardo Dias na sua Sintesi X-Wing, por Fernando Soares na
sua Wheeler 9700 ZX encarnada e por último, mas não por menos, Paulo
Parreira em Scott Boulder.
Optei pela "muleto" por ter uma posição de condução muito mais relaxante
devido à sua geometria e guiador sobrelevado, sem embargo as ascensões
foram penalizadas, quer pela geometria do quadro, quer pelo seu peso
excessivo. Mas a minha confiança era tal que entendi ser possível efectuar a
travessia naquela bicicleta (tal como se veio a verificar, de resto).

MOTIVAÇÕES
Será que é verdadeiramente necessária uma motivação muito forte para um
português ir a Fátima? Acho que não.
No nosso caso houve um mínimo divisor comum que se chama ciclismo de
montanha. Gostamos de bicicletas pelo desporto, pela evasão e pelo contacto
com a natureza e com o património que nos proporcionam. Percorrer o
"Caminho" foi, apesar da sua enorme dureza, o paradigma de tudo isto.
Pessoalmente que me situo a meio caminho entre o agnóstico e o católico não
praticante as motivações de natureza religiosa "tout court" estiveram
ausentes no momento de me decidir a encetar este projecto (que, de resto,
fui o mentor). Elas prenderam-se mais com motivos espirituais genéricos,
culturais, ambientais e desportivos - o desafio que constituía era, por
demais,
apelativo.
Apenas Paulo Pereira aí se deslocava por motivos religiosos, daí que tenha
sido com uma certa mágoa que não tive o prazer da sua companhia até ao final
como, inclusivamente, de o ter aconselhado, via telemóvel, a fixar-se no
local onde estava e aguardasse pelo resgate auto devido ao adiantado da hora
e ao estado de exaustão que apresentava.
Para o compensar terá oportunidade de realizar o troço final, entre Minde e
Fátima, ainda durante o mês de Agosto, assim teremos todos uma
possibilidade de efectuar (dois de nós pela segunda vez) esta última fracção
do "Caminho" por forma a permitir-lhe cumprir o seu desiderato espiritual e
de Fé.

. 1.º Troço - Lisboa - Vila Franca de Xira
A travessia fluvial do Tejo correspondeu ao despertar solar, pelas 06:30,
perante os já habituais olhares atónitos dos cidadãos que se deslocam para
os seus empregos relativamente aos ciclistas em "trajes de lycra" e às
respectivas bicicletas.
É algo que, de início, estranhamos, mas a que já nos vamos habituando e
perante o qual até reagimos positivamente: afinal quem não gosta de sair do
anonimato? Ainda por cima por uma boa causa.
Apenas quando estava a bordo descortinei que, apesar de me ter
minuciosamente preparado para a travessia, me esquecera do guia do
CNC. Mas nem tudo estava perdido: no dia anterior tinha passado duas
expectantes horas no consultório do otorrinolaringologista e tinha optado
pela
releitura atenta daquela publicação em detrimento das revistas sociais de
Fevereiro ou Março de 1999 que abundam nas salas de espera dos clínicos
portugueses.
De resto tinha tido a informação, por intermédio do meu companheiro
ciclista
Pedro Brites, de Leiria, de que a rede de marcos balizadores do CNC era
irrepreensível, tal como, de resto, pude constatar.
Rapidamente, após passarmos numa semi-destruída Praça do Comércio, vencemos
a ligação até ao "Parque das Nações" pela lateral do Porto de Lisboa. Aí
chegados procedemos à foto da praxe debaixo da pala de Siza Vieira naquele
que é oficialmente considerado o "quilómetro zero" do "Caminho".
O percurso junto ao Tejo que começa junto à Torre Vasco da Gama é sempre
muito agradável (sobretudo áquela hora da manhã) pese embora a dificuldade
de
circular em passadiços com as tábuas dispostas longitudinalmente naquela
que, supostamente, é também uma ciclovia.
Atingida a foz do Trancão seguimos a Sacavém, transpusemos a ponte e
continuámos pelo dique limitador da margem junto à "Salvador Caetano" onde,
uma centena de metros após, encontramos o primeiro dos estupendos marcos.
Pode ler-se, aí, num azulejo branco, pintado a azul, por cima de uma seta
direccional: "Caminho de Fátima", trata-se de uma visão tranquilizante já
que representou o primeiro de uma sucessão de contactos com este tipo de
estruturas de betão responsáveis por nos levar a bom porto.
Lá fomos nós pela margem esquerda do Trancão. Foi a primeira grande
surpresa do dia: então este é que é o Trancão nauseabundo? Nada disso este é
um Trancão saudável ladeado de sapais e com os seus ecossistemas, encaixado
num espectacular vale onde apenas destoam alguns montes de entulhos e visões
longínquas de inestéticas construções de génese ilegal no topo dos Montes.
Pelo contrário, a visão de Unhos, no outro lado do rio e da sua afilada
torre de Igreja são um momento memorável destes primeiros quilómetros. A
paisagem chega até a ser bucólica tendo nós avistado dois enormes rebanhos
de ovinos um dos quais era, por sinal, bastante educado tendo nós conseguido
passar pelo seu interior sem que os animais se tivessem assustado.
As ruínas da Quinta do Monteiro - Mor conferem-lhe o toque final. A
ruralidade ainda está presente às portas de Lisboa, afinal ali tão perto no
outro lado do morro sobranceiro à A1.
Passámos então à Granja e a Alpriate, duas pitorescas povoações perto de
Vialonga. Transposto o túnel da auto estrada entrámos noutro universo: o do
reino do betão e da confusão urbanística. Iniciávamos, assim, a parte mais
incaracterística e potencialmente perigosa da travessia: a ligação de
Alverca a Vila Franca de Xira pela EN 10, uma estrada ao pior estilo: ultra
movimentada, sem bermas e onde impera a lei do mais pesado.
Não é fácil partilhar esta língua de asfalto com as incontáveis viaturas
motorizadas pelo que a melhor táctica consistiu em pedalar o mais rápido que
podíamos para, após cruzarmos Alhandra, alcançar a visão da Praça de Touros
de Xira (propositadamente "a taurina" no dizer de Garrett) que nos permitiu
flectir para o interior daquela povoação e entrar em glória no vistoso
jardim "Constantino Palha".
Não sei, até que ponto seria possível, com a colaboração da autarquia, criar
uma passagem pelo sapal e junto às indústrias instaladas a partir da gare de
Alverca, do outro lado da ferrovia, por forma a evitar que os peregrinos e
os transeuntes que circulam pela EN 10 passassem em completa segurança.

. 2.º Troço - Vila Franca de Xira - Azambuja
A travessia até à Vala do Carregado, após escassas centenas de metros na
EN10 á saída de Xira, e após o supermercado "Lidl", foi feita por uma
estrada secundária que aliava o bom piso à escassez de tráfego automóvel
condições de excelência para que uma boa média fosse efectuada, de resto
tendo o mesmo sucedido entre a Central Termoeléctrica e Vila Nova da Rainha,
isto apesar de um dos marcos estar completamente tapado por um cartaz de
propaganda política.
Chegados a esta povoação e após termos transposto a EN 3 deparámos com um
marco derrubado embora estando intacto. Restauramos as forças e repusemos a
energia dispendida através de uma pequena diminuição do peso que
transportávamos às nossas costas sob a forma dos mais variados tipos de
alimentos:
sanduíches, bolachas, frutos secos, cereais, pastilhas isotónicas, barras
energéticas, fruta... a que se seguiu uma pausa no "Café Sevilha", ainda
naquela povoação, para tomarmos quatro deliciosas chávenas da quente bebida
que nomeia este tipo de estabelecimentos de hotelaria.
A chegada à Azambuja é efectuada de novo pela EN 3, simplesmente esta
estrada, neste local, é espaçosa e tem amplas bermas que permitem circular
em condições mínimas de segurança pelo que, não tendo a mais agradável das
paisagens (sobretudo pelo contacto olfactivo com o ar que rodeia um aviário
industrial logo após a fábrica da Opel) este troço efectua-se celeremente e
em curto espaço de tempo estávamos junto à gare da Azambuja.

. 3.º Troço - Azambuja - Santarém
Transpusemos então a linha férrea de forma original: a passagem desnivelada
de acesso à gare permite o trânsito de cadeiras de rodas por um intrincado
conjunto de rampas ascendentes e descendentes que são extremamente
divertidas de ciclar evitando o sempre desagradável transporte dos
velocípedes ao ombro.
Começa então a parte mais rápida da travessia e que nos conduzirá até à
cidade de Santarém através da plana lezíria que nos permitiu manter médias
horárias surpreendentes, sobretudo até ao Reguengo (onde avistamos o dique
do Tejo pela primeira vez) em que um excelente asfalto se alia à quase
inexistência de viaturas circulantes e de ventos nos leva a velocidades da
ordem dos 40 kms. hora sempre com o pulso devidamente controlado.
De resto a paisagem é algo monótona, campos de milho de perder de vista,
valas e um aeródromo perdido no meio da lezíria pelo que a chegada ao dique,
no Reguengo, foi aproveitada para uma desejada aguada num café local mesmo
defronte do muro de protecção.
É aconselhável transitar a partir desse local e sempre que possível no topo
do dique uma vez que o Tejo é absolutamente deslumbrante nessa zona com o
seu ar preguiçoso e cálido. De tal forma que, na Valada, não resistimos e
banhámo-nos nas águas do rio numa magnífica praia fluvial enquadrada pelo
harmonioso casario pombalino da povoação e pelos salgueiros das margens. Foi
uma pausa fantástica.
Continuámos pelo dique até ao Porto de Muge cuja ponte permite já a passagem
de peões até á margem esquerda. E, a partir desse ponto, pelo caminho de
terra batida que ladeava, pela esquerda, o dique já que, a partir de algumas
centenas de metros desta localidade, o dique deixa de servir de caminho
paralelo.
Algumas paragens à sombra para reagrupar permitiram colher algumas amoras
silvestres de gosto requintado. Rapidamente começamos a vislumbrar as
esguias torres da nova ponte Salgueiro Maia, perto de Santarém e alcançamos
a estrada de asfalto que nos conduzirá por debaixo da ponte até junto ao
aeródromo de Santarém e mais adiante, até ás Ómnias, não sem antes
depararmos com um marco onde se afixam os níveis das diversas inundações
que ciclicamente afectam aquela zona do Vale do Tejo.
Chegados às Ómnias iniciamos uma prolongada e quente subida pelo asfalto,
por entre os montes bem enxameados de oliveiras até Santarém pelo que, a
pausa a meio da ascensão, no chafariz da Junqueira, em que brotava uma água
fresca e cristalina, nos tivesse parecido uma mirífica visão de um oásis
tornando a nossa chegada a Santarém, assim, menos penosa.

4.º Troço - Santarém - Monsanto
Em Santarém foi onde sentimos a falta do guia pela primeira vez. De facto
quando se alcança a cidade os marcos desaparecem. Não adianta questionar os
cidadãos da urbe ou mesmo as autoridades pois indicam-nos a direcção de
Fátima pela EN - é a única que conhecem.
Felizmente a memória não me traiu e recordava-me que o quarto troço começava
no Largo do Liceu naquela cidade e prosseguia pela estrada militar que passa
junto à Escola Prática de Cavalaria e por aí seguimos e logo topamos o
marco - afortunada visão - lá fomos.
Após mais uma pausa num café, mesmo à saída de Santarém, antes dos
Missionários Combonianos, onde ingerimos mais
alguns suplementos energéticos lá continuámos entrando num tipo de paisagem
completamente diferente: maiores desníveis a exigirem maior dispêndio de
energia; pisos mais técnicos a solicitarem uma maior concentração no
pedaleio;
mais vegetação e sombras num quadro rural de grande beleza onde a paisagem
natural se casa harmoniosamente com a ocupação humana.
O calor aumentou devido à ausência de vento pelo que dois dos companheiros
ciclistas começaram a manifestar os primeiros sintomas de cansaço que era
agravado pelas mudanças constantes de cota típicas do relevo desta zona.
Atrás de nós, para Sul, Santarém ia tornando-se cada vez mais pequena e mais
baixa, sinal que estávamos agora a ascender em altitude. Os pisos alternavam
entre o asfalto (que começava agora a ser bem recebido pelos incondicionais
apreciadores de terra), a terra batida e a pedra solta ("tout-venant" no
dizer do guia do CNC) as diferenças de andamento entre os elementos do grupo
estavam agora mais nítidas já que inevitavelmente os dois primeiros tinham
de efectuar pausas periódicas para reagrupar os restantes.
Daí que a pausa em Santos nos soube maravilhosamente, havia que efectuar
aguada (a reserva constituída no chafariz da Junqueira estava esgotada para
alguns e horrorosamente quente para outros) e aí culminei as minhas
sanduíches de queijo.
Mais grave foi quando o simpático proprietário do estabelecimento, ao
responder a uma interpelação sobre a distância remanescente até Fátima,
afirmou, sem hesitar: quarenta quilómetros! Ia caindo o "Carmo e a
Trindade", para Fernando Soares, visivelmente o mais desgastado, era o "coup
de misericorde" daí que tivesse soltado um genuíno "fico já aqui!".
Demonstrei-lhe que não poderia ser essa a distância (embora não ficasse
muito longínqua da real) e lá continuámos.
Começámos, então a ascensão até à magnífica Cumeada dos Três Moinhos quando
numa pausa eu e Eduardo Dias, já no cume, junto ao terceiro moinho, vemos
surgir apenas Fernando Soares gesticulando para que voltássemos para trás.
Confesso que receei o pior já que, o elemento em falta, Paulo Parreira, já
tivera duas quedas relativamente graves em passeios anteriores. Quando
chegamos, estava ele à sombra do primeiro moinho com a corrente partida. O
alívio foi tal que desatei a rir, perante a surpresa do "acidentado" com uma
corrente partida na mão e sem saber exactamente o que fazer. Rapidamente
resolvemos a
situação utilizando o saber empírico, um desencravador de correntes e um elo
especial próprio para situações deste tipo e logo seguimos caminho pela
cumeada com o perfil da Serra d'Aire a adensar-se, cada vez mais, no
horizonte. Havia então que desdramatizar pelo que gracejei afirmando que
deveria de haver um túnel que evitasse a, previsivelmente dura, ascensão.
Passados alguns quilómetros chegámos aos Olhos de Água onde se situa uma
praia fluvial no rio Alviela, mais um oásis na nossa travessia. Aí a nossa
paragem foi mais demorada. Tempo para nos sentarmos na magnífica esplanada e
saborearmos uma bifana uma vez que a sensação de fome era uma realidade.
Esta paragem acabou por ser, a um tempo, bem-vinda mas excessiva já que se
perderam alguns minutos que no final seriam preciosos para evitarmos a
noite.
Após retemperarmos as nossas forças em breve alcançámos Monsanto.
Dois dos elementos do grupo, Fernando Soares e Paulo Parreira já davam
bastantes sinais de cansaço e a visão imponente do maciço da Serra d'Aire
que ia aumentando à medida que nos aproximávamos não era propriamente
tranquilizadora.

5.º Troço - Monsanto Fátima
Partimos para os últimos e mais duros quilómetros da nossa travessia. Ao
chegarmos ao Covão dos Fetos no sopé do maciço começámos a subir pelo
asfalto em direcção à Serra de Santo António e aí as diferenças de
rendimento eram já notórias porque tínhamos de aguardar, permanentemente,
por aqueles nossos companheiros de viagem, O pior foi o caminho de pé posto
em direcção ao cume. Mais duro seria impossível. Como queríamos seguir
integralmente o caminho foi por aí que nos abalançámos e a chegada ao topo
foi um duro teste físico e mental, para além do penoso transporte do
velocípede ao ombro (onde devido ao peso fui talvez o mais penalizado), já
no final tivemos de atravessar cerca de 300 metros de denso matagal de
carrasco que massacraram as nossas desgastadas coxas. Foi aí que comecei a
esboçar a frase com que inicio este "diário de bordo" - foi, este, sem
dúvida, o momento mais duro da nossa travessia. As bicicletas servem para
transportar-nos e não vice-versa pelo que, bem vistas as coisas teriam sido
preferíveis os quatro quilómetros extra do asfalto, por mais dura que fosse
essa subida.
Assim a chegada ao topo foi recebida com enorme alívio a que não foi alheio
o deslumbrante panorama que contemplámos para os lados de Minde e Mira
d'Aire, é mais uma daquelas ocasiões sublimes que o ciclismo de montanha nos
proporciona e que nos fazem esquecer, como que por milagre, o sofrimento da
ascensão. O estoicismo antecede e valoriza o epicurismo!
Pior mesmo era o moral de um dos participantes que, para além do esgotamento
físico, estava psicologicamente derrotado, provavelmente a escassez de
oxigénio inerente à dura subida pode também ter sido responsável.
A descida até Minde é vertiginosa e tive de usar alguma contenção para não
ultrapassar os 70 quilómetros por hora já que aquelas velocidades a
bicicleta é uma tipo de veículo que não oferece grande sensação de
segurança.
Rapidamente atravessámos Minde com o sol a esconder-se por detrás dos
montes, tempo de recolher os óculos escuros e descobrir que a roda dianteira
estava furada. Pausa e mudança rápida, era necessário não perder um segundo
pois a noite aproximava-se a passos largos. A íngreme ascensão para o Covão
do Coelho, juntamente com a luz que escasseava foi responsável por um golpe
de teatro: o caminho virava à direita, saindo do asfalto e os dois mais
atrasados com a subida falharam-no continuando pelo asfalto, enquanto isso a
noite era uma realidade.
Não só, os dois mais lentos, se perderam do contacto comigo e com Eduardo
Dias, como também entre eles. O contacto por telemóvel permitiu resolver de
imediato uma das situações. Aconselhei Paulo Parreira a voltar ao Covão e aí
aguardar o resgate automóvel.
Mais grave foi que não conseguíamos contactar Fernando Soares que, por
sinal, era o mais desgastado física e mentalmente. Resolvemos continuar
apesar de ser já de noite, de não termos iluminação, de estarmos em pleno
campo e de a lua apresentar um tímido quarto crescente.
Foi uma jornada final de aventura pura, sempre a apalpar o terreno, embora
sem baixar muito ritmo, tentando evitar, instintivamente, os regos e as
pedras que povoavam os trilhos e procurando não falhar um único marco.
Provavelmente por a sorte proteger os audazes conseguimos prosseguir, isto
apesar de ainda demorarmos alguns minutos a descortinar um dos marcos, era
essencial não falhar nenhum pois não se viam casas, nem pessoas.
Foi um passeio nocturno ao melhor estilo, tínhamos de encostar o nariz ao
marco para visualizar correctamente a direcção que a seta indicava.
Quase no final conseguimos contactar Fernando Soares - estava num café perto
da Giesteira e só agora o seu telemóvel conseguira ter acesso á rede
celular. Foi um alívio enorme e em breve estávamos em Fátima após termos
cruzado a auto-estrada.
A chegada ao Santuário pelas 10:30, com a igreja e a esplanada iluminada e
com uma procissão de velas que saía da capelinha das aparições composta por
algumas centenas de pessoas que entoavam cânticos religiosos transmitiu-me
uma sensação de glória. Tínhamos conseguido. Foi possível apesar da
provação. É muito diferente da cómoda viagem de automóvel e de demorarmos
apenas uma hora em auto-estrada.
Tempo de rumarmos às viaturas e de recuperarmos os nossos amigos juntamente
com as respectivas bicicletas.

EPÍLOGO
Provavelmente efectuar esta travessia num único dia seja bastante duro. No
entanto senti que era possível e a experiência foi bastante interessante a
este nível.
Um conselho que deixo a quem se queira aventurar-se num único dia é de que
parta cedo e de Verão, escolha companheiros de viagem com um ritmo de
andamento e forma física semelhantes aos seus(supostamente elevados), que
não se deixem vergar perante as inevitáveis dificuldades e evite as pausas
muito prolongadas.
Aproveite os quilómetros de lezíria para ganhar tempo embora sem exceder o
seu limiar aeróbico - as reservas energéticas vão ser bem necessárias de
Santarém em diante!
Para além disso é importante que esteja bem motivado, não encare esta
travessia de ânimo leve nem de modo diletante, a máxima de Juvenal "mens
sana in corpore sano" deve ser adoptada cabalmente.
Se seguir estas recomendações verá que, apesar da provação, apenas reterá
boas recordações e apenas pensará, tal como eu, em repetir a travessia.

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