sábado, 30 de julho de 2005
Fátima - O Caminho do Tejo revisitado
"No fundo o que está em causa é sempre o mesmo: o apelo do Homem para
se ultrapassar a si mesmo, a sua eterna inquietação, a sua condição de
ser que procura ... É de esperar, porém, que os peregrinos de hoje só
sintam uma efectiva satisfação com a ida a Fátima ou a outro santuário
qualquer se ela envolver alguns riscos e alguns incómodos, se ela for
a incursão a um tempo e a um espaço muito diferentes da vida quotidiana."
José Mattoso, "Caminho do Tejo", p.5, Readers Digest, Lisboa, 2000
"O Caminho de Fátima, efectuado em bicicleta num único dia, é uma
longa provação. O Peregrino tem de estar preparado para sofrer,
aceitar o desafio e superar-se pelo efeito da sua própria sublimação
espiritual."
Pedro Roque
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Na quarta-feira passada perante as ameaças de chuva lá fui com os
Jorges Cláudio e Manso. A saída deu-se ainda de noite junto ao
Pavilhão de Portugal no Parque das Nações. Rapidamente foram vencidos
as primeiras centenas de metros até ao Trancão e Sacavém.
Os aviões comerciais em movimento de aterragem sucediam-se sobre a
zona de Sacavém anunciando aquilo que já previa: o vento ao contrário
do que é normal soprava do quadrante sul por isso a velocidade inicial
era muito boa e anunciava que, até Santarém, tudo iria ser muito rápido.
O BARRO DOS PRIMEIROS METROS
Não fossem os primeiros metros junto ao Trancão e assim seria. A chuva
da véspera tinha humedecido o barro do talude que é percorrido no
troço do rio. O resultado não podia ser pior: o barro aderiu às rodas
e, para além de a roda traseira ameaçar permanente derrapagem, vimos
as bicicletas aumentarem de peso. Mais adiante foi a vez de uma palha
irritante aderir ao barro e ainda a gravilha da zona junto à A1. A
solução expedita foi limpar tudo com as mãos, na medida do possível.
Chegamos então ao asfalto e a póvoa de Santa iria onde passamos pelo
viaduto para o outro lado da ferrovia para uma estrada de serventia
industrial onde é mais fácil circular. De referir que, a dada altura,
há um portão em rede que encerra o caminho ao trânsito, numa zona de
paul, mas onde os famosos postes do "Caminho de Fátima" continuam a
indicar a direcção e nós por aí fomos até porque a sua intenção era
mesmo impedir a passagem de viaturas motorizadas.
A COMPLICADA TRAVESSIA URBANA
A passagem da zona da Base Aérea para a área urbana de Alverca é
sempre um "must". O caminho passa, exactamente, por dentro da estação
ferroviária que àquela hora está repleta de gente, como é normal de
esperar. Ora, a passagem de três criaturas "licradas" com as máquinas
ao ombro (há que subir e descer escadas) e repletos de lama deixou
muitos boquiabertos perante a olímpica indiferença dos ciclo-peregrinos!
Seguiu-se um périplo por ruas secundárias de Alverca e tomámos a EN10
junto ao Sobralinho.
Pouco tempo rolámos até que vimos, já à saída de Alhandra, uma área de
serviço. Foi tempo de lavar com a mangueira as máquinas procurando,
sobretudo, aliviar o peso extra e limpar minimamente as transmissões.
Seguimos até Vila Franca de Xira onde, no jardim Constantino Palha se
segue a cena habitual (esta foi a quinta vez que a vi repetida): "Não
podem andar aqui de bicicleta!" perante a nossa, também olímpica
ignorância. Segue-se a Vala do Carregado, Vila Nova da Rainha e
Azambuja: o vento pelas costas fazia maravilhas em termos de média.
A LEZÍRIA À MÉDIA DE 30 KMS/H
A passagem para a Vala Real faz-se de forma clássica, ignorando o
novel viaduto, mas utilizando a passagem nas rampas para deficientes
que serve a estação ferroviária. Depois é pedalar forte, primeiro para
E mas logo após para N e sempre por asfalto já que as indicações dos
marcos apenas fazem perder tempo ao passar por zonas fortemente
alagadiças junto aos campos de milho da lezíria.
Passamos o aeródromo, chegamos ao Reguengo e à Valada onde é
obrigatória uma pausa para o reforço alimentar. Retomamos sempre a bom
ritmo e, quase a chegar às Ómnias (junto à ponte Salgueiro Maia) um
golpe de teatro: a transmissão da minha "muleto" não estava nas
melhores condições e, numa altura em que pedalei forte de pé, a
corrente falha e perco o equilíbrio.
Nada de especial em termos físicos mas uma forte joelhada no quadro
deixou a zona abaixo da rótula direita algo dorida e inchada. Foi
então que encontrámos dois outros peregrinos (pedestres) que já iam no
seu segundo dia de jornada. Na subida para Santarém constatei que não
me era fácil fazer força para além de estar completamente fora de
questão pedalar em pé já que, cada vez que o fazia, a transmissão
falhava. Ainda assim a média de Lisboa a Santarém foi absolutamente
estonteante.
A DUREZA SURGE SEMPRE APÓS SANTARÉM
Em Santarém comemos qualquer coisa mais consistente (nos termos da
"escola Pedro Rodrigues" – private joke) e seguimos para o troço mais
duro da travessia: para além dos quilómetros começarem a pesar, o
calor tinha feito a sua aparição e os desníveis começavam a fazer-se
notar.
De igual modo esta é a zona onde o TT supera a estrada. Apesar da
baixa de ritmo, as povoações iam sucedendo-se, uma atrás da outra:
Azóia de Baixo, Advagar, Santos, Arneiro da Milhariça, a famosa e
demolidora subida para o Outeiro dos Três Moinhos e nova paragem nos
Olhos d'Água a famosa ressurgência do Alviela. Aí, como chovia um
pouco, prolongámos a pausa.
Segue-se uma exigente subida até Monsanto e nova subida até se atingir
um plateau que nos irá conduzir ao Covão do Feto no sopé do maciço da
Serra d' Aire. Aí há que subir uma rampa demolidora até à estrada onde
se ignoram os marcos que nos mandam subir a portela da Costa de Minde
em azimute e sem condições cicláveis. Assim a solução é a habitual,
vencer os dois quilómetros extra por asfalto até Serra de Santo
António e virar na direcção de Minde. Do alto da Costa de Minde e até
esta povoação é uma forte descida de asfalto onde importa conseguir
travar oportunamente antes das apertadas curvas.
O CALCÁRIO FINAL
Após esta povoação é uma infindável subida até ao Covão do Coelho e
daí pelo planalto de são Mamede e ainda durante alguns quilómetros
sempre ascendendo num "piso PNSAC" i.e.: com mais calcário que terra.
Foi neste troço que me senti pior já que desde Santarém que me era
impossível pedalar de pé e, consequentemente, o "stress" na zona do
selim começava a ser difícil de suportar.
No entanto, a partir do momento em que se atinge o topo, começa uma
zona muito rápida que passa nos pinhais em Valinhos e Moita do
Martinho. Aqui "já cheira a Fátima!" e de novo a velocidade começa a
aumentar.
Pelas 17:30 o santuário está à vista 160 kms. depois do Parque das Nações.
A sensação de dever cumprido é sempre idêntica e tem outro significado
estar diante da Capelinha das Aparições e contemplar a basílica. Se
não fosse o problema no joelho esta teria sido, sem dúvida, a mais
fácil de todas as minhas peregrinações anuais.
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