quarta-feira, 29 de abril de 2009
AS SETE CIDADES E O SINDROME DE STENDHAL
O escritor francês Stendhal (1783-1842) descreveu à posteridade a curiosa experiência psicossomática que viveu ao visitar a toscana Florença e ao estar exposto a tantas obras de arte, especialmente belas, num mesmo local e ao mesmo tempo. O escritor testemunhou, incrédulo, pulsação acelerada, confusão mental e até alucinações perante a omnipresente arte florentina num fenómeno que ficou conhecido por Síndrome de Stendhal e que é aplicado para descrever situações semelhantes.
No domingo passado fui afectado por um fenómeno psicossomático semelhante, não perante a arte florentina, mas defronte da incrível beleza natural da caldeira das Sete Cidades, na ilha de São Miguel, Açores. Se bem que já antes, em três ocasiões, havia visitado o local, nunca como neste domingo, 26 de Abril, havia ficado deslumbrado com a beleza estonteante do local.
É de êxtase que vos estou a falar...
Claro que sou suspeito, claro que acho que os arquipélagos macaronésios dos Açores e da Madeira são dos últimos vestígios do Éden que sobrevivem na Terra, claro que me forço por visitar, sempre que posso, as nossas ilhas...
Se a essa predisposição obsessiva conseguirmos juntar uma bicicleta de montanha então estão criadas as condições - assim a meteorologia também ajude - para um deslumbramento integral, uma superação sensorial da própria existência e temporalidade para se atingir uma espécie de Nirvana Velocipédico, sobretudo se o mesmo corresponder a um local como a caldeira das Sete Cidades, sítio de lendas e vestígio último da lendária Atlântida, a ilha encantada.
Já havia pedalado no chamado triângulo central açoriano (Faial, Pico e São Jorge) nos idos de Julho de 2005 mas nunca em São Miguel. Desta vez cumpri o desejo tendo levado comigo a máquina de montanha.
O domingo amanheceu solarengo, coisa sempre rara nos Açores. Após o pequeno-almoço levei a bolsa de transporte até ao exterior do Hotel, em Ponta Delgada, e remontei o conjunto: enchi as rodas e a suspensão (é obrigatório retirar a pressão dos mesmos por causa do ambiente pressurizado da aeronave), rodei o guiador 90% para a sua posição natural, e reapertei o desviador traseiro no dropout do negro quadro. Tudo perfeito para começar a ascensão.
E que ascensão! Dos cerca de 25 metros de altitude do hotel, até aos quase 900 metros do farol aeronáutico no topo da cratera das Sete Cidades, ao longo de mais de 25 kms. Tinha traçado previamente um troço no Google Earth para evitar as estradas mais movimentadas e a condução automóvel errática, típica do arquipélago.
Assim cruzei boa parte da zona alta de Ponta Delgada e subi continuamente em direcção a Arrifes. Apesar de domingo havia algum movimento de viaturas em direcção às igrejas e constatei o equivalente açoriano aos carros comerciais brancos do continente, ou seja, as pick-up com o depósito do leite na caixa traseira e a sua condução ao estilo de um recém perpetrador de carjacking. Como já sabia ao que ia, coloquei o impermeável verde radioactivo bem visível na rede exterior da mochila. De resto, vencida a zona de Arrifes e subindo em altitude, o tráfego começou a rarear até, pura e simplesmente, desaparecer já que se tratavam de estradas secundaríssimas.
Também complicado é o facto de estarmos, autenticamente, em pleno reino da bosta, tal a quantidade de vacas leiteiras existente. Convenhamos que o postal típico dos Açores, com as vaquinhas e as hortênsias, confere uma beleza ímpar às paisagens mas tem um desejável efeito secundário sob a forma de bosta que acaba revestindo o asfalto que cruza estes encantadores cenários naturais. Todavia nada que me demovesse de continuar a subir, cada vez mais.
A dada altura abandono a estrada para um conjunto de rampas asfaltadas ascendentes que abordam a chamada Serra Devassa e a cumeada da cratera da caldeira das Sete Cidades. Confesso que me foi difícil controlar o pulso e, por mais de uma vez, tive de parar no final das rampas para o recuperar. Sinal típico dos Açores: ao calor de Ponta Delgada sucedia agora um frio incomodativo empurrado por um vento forte de Norte a que o impermeável deu, todavia, suficiente abrigo.
Alcançado o espectacular aqueduto (conhecido pelo muro das seis janelas) foi tempo de entrar num denso bosque de criptomérias (cryptomeria japonica) de dimensões gigantescas a contribuírem para adensar a ambiência feérica endémica das ilhas açorianas.
Uma última e íngreme rampa haveria de ser vencida para o ponto mais alto e para o deslumbre completo. No topo, com a caldeira a meus pés, o lago azul, o verde, a misteriosa Lagoa de Santiago, a pequena povoação branca e aquele penetrante silêncio absoluto. Senti-me no céu. Tenho para mim que, quanto mais penosa é a subida, mais forte é o deslumbramento da paisagem no topo e as Sete Cidades são, sem dúvida, o paradigma desta tese.
Nunca tinha abordado a cumeada da cratera pelo lado norte (PR 4 SMI), apenas pelo Sul, pela Vista de Rei. Aqui tudo é mais dramático, as vistas e as rampas que sobem e descem num rompe-pernas constante a exigir o nosso melhor empenho. Sem embargo, nem ponta de cansaço, as vistas operavam maravilhas e sentia-me em comunhão com a máquina e com o local lendário. As perspectivas alteram-se a cada passo, cada uma mais encantadora que a anterior. Vou-me cruzando com caminhantes, todos eles estrangeiros. Nas ilhas, como no continente, os portugueses parecem alheados destes encantos, excepto se aí puderem aceder sentados numa viatura automóvel. É pena...
A dado ponto, quando nos encontramos a poente da cratera, há que escolher e opto por descer o trilho da caldeira do Alferes (PR 3 SMI) e que me conduziu à vila das Sete Cidades, e que descida - técnica, lenta e exigente, pelo meio de um túnel de vegetação - só visto e sentido.
Chegado à quota da lagoa sigo para a vila e sento-me numa esplanada, restaurando energias, observando e sendo observado, seja pelos locais, seja pelos inúmeros turistas nórdicos que demandavam o estabelecimento.
Antes de abordar a subida (havia que sair do buraco, afinal tinha descido dos 870 para os 250 metros) fiz a margem poente até ao túnel que controla a quota da lagoa e que descarrega, os seus caudalosos excessos, do outro lado da montanha. Trata-se de uma espécie de must turístico e serviu de aquecimento para a abordagem à subida pelo asfalto em direcção a Mosteiros e que conduz ao trilho da Vista de Rei, a réplica sul da cumeada que efectuei anteriormente e que tem vistas diferentes, belas sem dúvida, mas sem o dramatismo paisagístico a outrance do Norte. Finalmente na Vista do Rei com o folclore turístico habitual cumpri também o ritual das fotos da praxe.
Aqui chegado equacionei duas hipóteses: descer pelo rápido trilho que se internava num novo bosque de criptomérias, contornar a Caldeira Seca, por Sul, pelo trilho do cemitério, regressar às Sete Cidades e subir o asfalto pela Lagoa de Santiago de novo em direcção à Vista de Rei ou, alternativamente, fechar logo o círculo da cumeada e seguir subindo em direcção à Lagoa do Canário e ao PR 5 SMI que se internava pela Serra Devassa em quotas superiores aos 800 metros.
Optei pela segunda - erradamente, admito-o agora. O trilho da Serra Devassa deixou de ser ciclável a partir de dada altura pelo que ingloriamente tive de recuar perdendo a oportunidade de regressar às Sete Cidades. Tampouco a visita à Lagoa do Canário foi possível pois só a partir de Maio o parque está aberta ao público.
Restou regressar pelo mesmo caminho de ida. As rampas anteriormente ascendentes são agora rápidas descidas. Numa delas, com a visibilidade bem assegurada, soltei os travões e o conjunto rolou livremente alcançando o expressivo registo de 72 kms./h! Até Ponta Delgada fiz um desvio até Capelas e segui pela ER 4 mas, perante a intensidade de tráfego e do estilo de condução rapidamente retomei a tranquila estradeca dos Arrifes para chegar a Ponta Delgada.
Aí aproveitei para ir até ao centro e restaurar na esplanada que fica frente à Sé.
No final mais de 80 kms. sendo que, metade, corresponderam a ascensões de respeito.
A vontade de regressar é grande, aguardo apenas nova oportunidade.
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